Alice da Silva é uma mulher preta que tem muita história para contar. E foi exatamente isso o que ela fez na noite desta terça-feira (27), ao ser o centro de mais uma edição do “Gente Daqui”, ciclo de encontros literários do Curitiba Lê. A atividade, promovida pelo poder público da capital paranaense, ampliou a voz da afro-colombense de 89 anos, na Casa da Leitura Wilson Bueno, no Portão Cultural, dando-lhe um espaço de protagonismo, reforçando sua resistência e empoderando sua ancestralidade.

Alice mora no bairro Osasco desde a década de 70. Contudo, seria ingênuo resumi-la a “uma simples moradora deste município” por parte do Jornal de Colombo nesta reportagem. E ela mesma não faz isso ao convidar o público a conhecer parte de sua vida com a autobiografia Doces Memórias de uma Mulher Negra na Grande Curitiba.


livro Doces Memórias de uma Mulher Negra na Grande Curitiba

Capa da autobiografia Doces Memórias de uma Mulher Negra na Grande Curitiba. Foto: Divulgação/Editora Humaitá


Por aqui, mesmo que fossem escritos 12 mil caracteres (ou mais), ainda assim não seria possível classificá-la, “pô-la em uma caixinha” — e nem é o intuito deste texto, que tem como premissa incitar você a buscar mais informações sobre a ação de uma mulher discreta, mas elegante, e que vive em um dos locais mais populosos desta cidade.

No evento ocorrido em Curitiba, em cerca de duas horas, a escritora fez uma viagem por sua vida com aqueles que foram até o Museu Municipal de Arte (MuMA), convidando-os a refletir sobre as memórias e os enredos que cercam as experiências de uma mulher negra, que é mãe, costureira, lavadeira; já foi camareira na Fundação Cultural de Curitiba (FCC) e, de certa forma, pedreira; que chegou ao Paraná por meio do fenômeno do êxodo rural; e que tem como um dos maiores orgulhos pessoais o título de “doceira de mão cheia”. Algumas dessas receitas — com métodos exclusivos, inclusive — estão compartilhadas no livro publicado em 2022 pela Editora Humaitá. À época, Alice tinha 86 anos de idade.

Ao Jornal de Colombo, no final do evento, ela respondeu como se sentiu de forma simples e direta, como uma mestra griô — mulher reconhecida dentro da cultura africana por ser uma guardiã dos saberes e fazeres ancestrais e que ensina aos descendentes por meio da oralidade — costuma fazer:

“Estou feliz. Estou realizando meu sonho. Há muitos anos eu queria fazer (o livro), mas não sabia como começar. Com ajuda, onde eu não sabia, eu perguntava para alguém me explicar. Hoje, estou feliz”.

O livro e suas provocações

O livro de Alice ressalta a importância da oralidade, do saber ouvir e de dar palco a “histórias que a História não conta”. É isso o que Mestre Kandiero, curador do livro, pontuou ao Jornal de Colombo, também em entrevista:

“Na cultura negra, a palavra não apenas descreve a realidade — ela cria a própria realidade. (…) E, neste momento de afirmação da nossa identidade afro-brasileira, é importante que essas pessoas anônimas, que têm vidas extraordinárias, possam começar a escrever as suas histórias.

(…) Quando vejo pessoas comuns, pessoas que têm muito o que dizer, muito o que escrever, que estão no anonimato — como Dona Alice — e conseguimos registrar toda essa memória de quase um século de vida, trazendo esse recorte, deixando essa memória viva… isso é fundamental. É fundamental para as futuras gerações, para os professores que têm a responsabilidade de implementar a Lei 10.639.

Escutar a voz dessa mestra griô — e ela é uma mestra griô, porque a vida fez dela isso — é essencial. Vejo que isso precisa se multiplicar”.

Eric Fernando Czelusniak soube do evento ao acompanhar as redes sociais da FCC. Frequentador da Biblioteca Pública do Paraná (BPP), ele diz que tem tentado se engajar no universo literário que envolve a Grande Curitiba, justamente para conhecer a identidade das pessoas/personagens que vivem esse contexto social e também porque deseja realizar um documentário sobre as casas de leitura da cidade.


Alice Silva escritora afro-colombense

Alice da Silva, escritora afro-colombense. Foto: Divulgação/Editora Humaitá


Questionado sobre a experiência vivida nesta terça, Eric mencionou o aprendizado obtido diante do relato de uma mulher negra multifacetada, que se dispôs a compartilhar seu íntimo com o grande público. Ele considerou o impacto ainda maior, sabendo que a trajetória de Alice é marcada por tamanha profundidade:

“Imagina o que é isso, né? Vim aqui numa biblioteca e ter pessoas dispostas a ouvir ela, né? Pessoas que nem conhecem ela, sabe? Acredito que seja uma experiência muito significativa para qualquer pessoa”, iniciou.

O estudante de Psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) também falou sobre o ato de ouvir e fez uma analogia com o processo terapêutico, completando Kandiero com sua fala sobre a cultura africana.

Para ele, além do saber oralizado, que é o ponto de partida para a criação do livro, há outro ponto fundamental que não pode ser esquecido: a capacidade da linguagem como fator estruturante para a criação da realidade e para a estruturação do mundo.

“O principal que está em questão no processo terapêutico é você se ouvir dizendo as coisas que fala. É você assumir, de certa forma, a posição do sujeito denunciado daquilo que você fala. Porque tem muita coisa que a gente fala, que é uma linguagem trivial, e a gente não se ouve. Às vezes, a gente fala e, depois de um tempo, já não se reconhece naquilo que falou.

Então, se fosse pra dizer alguma coisa sobre escuta, eu acho que ela é fundamental pra que as pessoas consigam se compreender a partir de uma certa posição de capacidade criadora na própria história. Primeiro, você tem que se ouvir, tem que reconhecer aquilo que você diz, pra que, a partir disso, você possa criar alguma coisa nova. Não sei se é a melhor resposta, porque é uma pergunta difícil, é uma pergunta que toca muito, né?”

Melissa Reinehr, também curadora de Doces Memórias, reforçou ao Jornal de Colombo o laço afetivo que há no livro. A empresária do ramo da literatura acompanhou o processo de criação do conteúdo de forma detalhada, algo que considerou um privilégio pessoal e uma experiência que ficará para sempre em sua vida:

“A gente que gosta de ouvir as histórias dela, de ouvir ela falar, contar, e a gente só vivendo. Fiquei muito contente de ter tido a oportunidade de ser a editora que acompanhou essa jornada e quem mais ficou pertinho. Então, eu pude acompanhar as histórias e tantos aprendizados.

Para mim, foi muito importante conversar com uma mulher sobre assuntos de mulher (parto, maternidade, cuidados com a vida, crianças, essas coisas). Houve tanta coisa que eu aprendi, e aí ajudá-la a escolher quais histórias iriam para o livro ou não, foi bem emocionante”.

Kandiero finaliza com uma provocação ao público e questiona: “Quantas Alices existem em Colombo?”

“Dona Alice é detentora de um saber. Ela pega um osso de boi e faz um doce maravilhoso chamado mocotó. Faz cocada, faz doce de amendoim, faz sabão… Olha quanto conhecimento ela tem. E todo esse saber, que muitas vezes não é valorizado, também desenvolve a economia.

Isso é um saber que se transforma, também, em produtos. (…) Por que a gente valoriza o risoto, valoriza a polenta… Os saberes, por exemplo, dos ítalo-colombenses são valorizados, e os saberes dos afro-colombenses não são? Por quê?”

Gratidão

No fim, Alice também agradeceu a todos que participaram do evento, onde revelou as intenções para a escrita de uma segunda obra. Ela ressaltou que foi intencional deixar algumas memórias fora do livro e que seu objetivo é não “parar por aqui”.

Mesmo que não tenha previsibilidade do lançamento de um segundo livro, a personagem principal deste relato tem energia de sobra para seguir criando e produzindo conteúdos que são, no fim das contas, atemporais:

“É emocionante ver as pessoas cederem do seu tempo para ouvirem ‘as nossas histórias’. Eu voltarei mais vezes…”

Veja as imagens do evento, abaixo:



Sobre o Gente Daqui

A iniciativa é da FCC e, segundo a Prefeitura de Curitiba, acontece uma vez por mês, sempre com um autor ou autora diferente. Além de promover a literatura local, o projeto também incentiva o uso da plataforma Curitiba Lê Digital, disponível gratuitamente no Curitiba App. Nela, é possível acessar e baixar mais de 200 obras, incluindo todas as selecionadas para os encontros do Gente Daqui.

Desde março, o Curitiba Lê Gente Daqui já promoveu encontros sobre Galo Sem Turno, de Marise Manoel, e Novelos Nada Exemplares, de Susan Blum.

A agenda segue com Querides Monstres, de be rgb, em junho; O Escritor Morre à Beira do Rio, de Lucas Lazzaretti, em julho; A História de Piragui, de Olivio Jekupe e Maria Kerexu, em agosto; O Estranho Hábito de Dormir em Pé, de Paulo Sandrini, em setembro; Azizi, o Presente Precioso, de Lucimar Rosa Dias, em outubro; e Sô Zoripes e a Moça com Anel de Pedra Verde, de Nará Souza Oliveira, junto com Escritos de Resistência, de Valdir Izidoro Silveira, em novembro.

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